Pela
idade em que lia um livro da colecção “Os Cinco” por dia, havia de ter dez
anos, não mais, foi parar à minha biblioteca, certamente comprado pela minha
mãe, um livro muito especial. Não sabia de tal quando o vi; não sabia de tal quando
o comecei a ler; creio que já o sabia quando a sua leitura se tornou um
encantamento para mim; sabia-o já quando terminei de o ler e as personagens, os
seus pequenos dramas familiares e pessoais, os espaços onde se moviam, o tempo
da sua existência, tudo isto tomou lugar cativo na minha própria existência,
como se aquele mundo fosse um mundo paralelo ao meu, tão vivo e tão real como o
meu; sei-o agora com toda a segurança – aquele foi/é (é certamente) um dos
livros mais marcantes da minha vida.
Foi
um amor feliz – é um amor feliz, pois os amores felizes fazem sempre parte do
presente, não se esquecem, não sucumbem à passagem do tempo, não são relegados
nem substituídos. Depois de muitos anos se passarem, Mulherzinhas, de Louisa May Alcott, não deixou de ter o mesmo lugar
de honra no meu coração, e é com ternura que recordo daquele primeiro amor. E
penso: o primeiro amor – se feliz – mantém-se inalterado, conserva sempre o
viço da juventude com que foi vivido; a ele podem seguir-se outros, tão ou mais
fortes, mas que não o rasuram; o primeiro amor tem a candura de algo que escapa
ao tempo e que, de forma latente, está presente em todos os tempos posteriores
da nossa vida. Guardei Mulherzinhas
na estante. Não o reli. O primeiro amor só se vive uma vez, depois recorda-se,
e nessa recordação permanece inalterado. Reler Mulherzinhas em idade madura podia ter um efeito perverso, pois a
minha alma já não tem o olhar cândido que me fez apaixonar pelo livro. Guardei Mulherzinhas e vivo ainda aquele
primeiro amor feliz.
De
outros amores felizes se foi tecendo, ao longo dos anos, a minha relação com os
livros: A Relíquia, de Eça de
Queirós, O Tempo e o Vento, de Érico
Veríssimo, A Insustentável Leveza do Ser,
de Milan Kundera, A Montanha Mágica,
de Thomas Mann, Cem Anos de Solidão,
de García Márquez, Evangelho Segundo
Jesus Cristo, de Saramago, Nenhum
Olhar, de José Luís Peixoto, a poesia de Sophia ou de Safo. E outros,
tantos outros amores felizes. Os livros não nos desiludem senão de forma clara
e frontal, e pomo-los de lado. Acabou, nem sequer chega a ser um amor infeliz.
Simplesmente um amor que não é. Ou um amor feliz, que, sendo o segundo ou o
quinquagésimo, não rivaliza com os demais. Os livros são amores acumuláveis e
que não se esgotam com o passar do tempo, com quezílias ou com traições. Não
nos abandonam nem se furtam ao nosso amor.
Hesitei
perante a escrita desta crónica na primeira pessoa, falando de um amor tão
particular. Estive para carregar na tecla Delete. Mas mantive-a – como mantive
o meu primeiro amor: um amor feliz, que sempre me fará falar de Mulherzinhas de forma emocionada. Deixo
um depoimento. Talvez faça eco nos corações que viveram ou querem viver amores
felizes.
Paula de Sousa Lima
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