segunda-feira, 4 de março de 2013

Um amor feliz


Pela idade em que lia um livro da colecção “Os Cinco” por dia, havia de ter dez anos, não mais, foi parar à minha biblioteca, certamente comprado pela minha mãe, um livro muito especial. Não sabia de tal quando o vi; não sabia de tal quando o comecei a ler; creio que já o sabia quando a sua leitura se tornou um encantamento para mim; sabia-o já quando terminei de o ler e as personagens, os seus pequenos dramas familiares e pessoais, os espaços onde se moviam, o tempo da sua existência, tudo isto tomou lugar cativo na minha própria existência, como se aquele mundo fosse um mundo paralelo ao meu, tão vivo e tão real como o meu; sei-o agora com toda a segurança – aquele foi/é (é certamente) um dos livros mais marcantes da minha vida.

Foi um amor feliz – é um amor feliz, pois os amores felizes fazem sempre parte do presente, não se esquecem, não sucumbem à passagem do tempo, não são relegados nem substituídos. Depois de muitos anos se passarem, Mulherzinhas, de Louisa May Alcott, não deixou de ter o mesmo lugar de honra no meu coração, e é com ternura que recordo daquele primeiro amor. E penso: o primeiro amor – se feliz – mantém-se inalterado, conserva sempre o viço da juventude com que foi vivido; a ele podem seguir-se outros, tão ou mais fortes, mas que não o rasuram; o primeiro amor tem a candura de algo que escapa ao tempo e que, de forma latente, está presente em todos os tempos posteriores da nossa vida. Guardei Mulherzinhas na estante. Não o reli. O primeiro amor só se vive uma vez, depois recorda-se, e nessa recordação permanece inalterado. Reler Mulherzinhas em idade madura podia ter um efeito perverso, pois a minha alma já não tem o olhar cândido que me fez apaixonar pelo livro. Guardei Mulherzinhas e vivo ainda aquele primeiro amor feliz.

De outros amores felizes se foi tecendo, ao longo dos anos, a minha relação com os livros: A Relíquia, de Eça de Queirós, O Tempo e o Vento, de Érico Veríssimo, A Insustentável Leveza do Ser, de Milan Kundera, A Montanha Mágica, de Thomas Mann, Cem Anos de Solidão, de García Márquez, Evangelho Segundo Jesus Cristo, de Saramago, Nenhum Olhar, de José Luís Peixoto, a poesia de Sophia ou de Safo. E outros, tantos outros amores felizes. Os livros não nos desiludem senão de forma clara e frontal, e pomo-los de lado. Acabou, nem sequer chega a ser um amor infeliz. Simplesmente um amor que não é. Ou um amor feliz, que, sendo o segundo ou o quinquagésimo, não rivaliza com os demais. Os livros são amores acumuláveis e que não se esgotam com o passar do tempo, com quezílias ou com traições. Não nos abandonam nem se furtam ao nosso amor.

Hesitei perante a escrita desta crónica na primeira pessoa, falando de um amor tão particular. Estive para carregar na tecla Delete. Mas mantive-a – como mantive o meu primeiro amor: um amor feliz, que sempre me fará falar de Mulherzinhas de forma emocionada. Deixo um depoimento. Talvez faça eco nos corações que viveram ou querem viver amores felizes.

Paula de Sousa Lima

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