segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

Encontro

Volta o livro nas mãos. Os olhos não se focam nem em mim, que lho dei, nem na capa ou conteúdo. Dir-se-ia que remexe aquele objeto estranho a que terá que dar um destino qualquer mas que não o reconhece; não existe intimidade para ele no seu mundo.
Pergunto-lhe se já o leu. Responde que não sabe por onde começar, são muitas letras; tem que estudar para os testes, tem aula de natação, se não pode substituir aquele trabalho por um relatório sobre a aula ou sobre um programa de televisão.
- Pois… digo, e lanço o meu  trunfo – mas é que este livro foi escrito de propósito para um rapaz como tu.
- Como eu?!...
Aproveito a sua surpresa, e apoio-me na indecisão para propor-lhe:
- Fazemos assim: não procures preencher a ficha sobre o livro. Lês, apenas. Ou pedes a alguém que to leia. Depois vens e dizes-me o que achaste  da história… o que ela tem de parecido com a tua.
Fica interdito. Diz que não sabia que as histórias podiam ser escritas para alguém em especial ou para muitos; achava que os livros eram guardiões de palavras muito complicadas e que nem toda a gente sabia manuseá-los.
Digo-lhe que os livros, como tantas outras coisas pela mão do homem, não passam de mensagens. Porém só acontecem quando alguém as reconhece. Como poderemos reconhecê-las se não nos aproximarmos o suficiente?
Passam-se alguns dias. Tempo em que, por um acordo tácito, para que se possa operar a magia, não contabilizamos as horas inóspitas ou a avaliação expectante. Eu estou crente no poder da narrativa; ele, estará preso pela novidade da experiência?
Quando voltamos a encontrar-nos traz uma expressão triunfante e sonhadora: não preciso de pedir-lhe para me contar tudo: a sua vida e as aventuras do herói são uma coisa apenas. E já não há palavras, apenas uma grande saga em que participa.
Fala. E enquanto fala, os olhos não se focam em mim, nem na capa ou conteúdo. Estão para lá do presente, para lá do receio, num mundo que finalmente aceita como seu.
Muitas vezes me tenho perguntado qual será o real objetivo de um Plano Regional de Leitura para rapazes como este, tantos são os que povoam a minha vida.
Que aprendam a ler mais e melhor, que se tornem críticos do texto escrito, à sua medida, que descubram o mundo através deste contato?
Sem dúvida, tudo isso, mas acima de tudo será uma conquista se houver um encontro: as suas palavras, aquelas que ainda não tomaram forma mas que navegam na mente à espera de serem experimentadas, com as palavras do livro; os seus receios, os seus júbilos, a sua vida ainda em metamorfose, com a vitalidade que transpira do livro; o conhecimento empírico e alimentado, com a sapiência subjacente às histórias do livro.
É este tipo de encontro que espero muito que aconteça, que é necessário acontecer para que a leitura não cristalize num mero episódio às portas da fortuna, para que ele ganhe o hábito e depois (muito melhor) o vício, a compulsividade de ler: falo deste género de encontro.

Madalena San-Bento

1 comentário: